Não acredito em coincidência. Há cerca de um ano, comprei Envelhescência: o trabalho psíquico na velhice, escrito por uma das minhas professoras, Flávia Maria de Paula Soares. Antecipo: é preciso coragem para encarar o passar do tempo.
Por diversas razões, li-o em Portugal, onde estou fazendo intercâmbio acadêmico na Universidade Fernando Pessoa (UFP), na cidade do Porto. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) – o IBGE daqui – em 2021, a população idosa representava mais de 23% dos portugueses. Para cada cem jovens, existiam 182 velhos.
Chamou-me a atenção na primeira aula na UFP, a professora se apresentar como velha. “Eu sou velha. Tenho mais de 65 anos, trabalho há mais de 30. Sou velha. Tenho orgulho de ser velha.” Num primeiro momento, pode ressoar estranho, agressivo até, mas a fala se comprova nas ruas. Os velhos estão por toda a parte. Atividades de lazer, bares, padarias, restaurantes, e muitos deles trabalhando. Não existe vergonha aparente de ter mais de 65 anos.
Ler a obra de Soares neste contexto trouxe-me reflexões talvez não perceptíveis em outro local. A autora questiona a possibilidade de realizar um trabalho psíquico na velhice, a partir dos preceitos da psicanálise.
Com um rico material teórico e quatro relatos de casos – mulheres com idades entre 76 e 94 anos – é possível percorrer um caminho de entendimento sobre como acolher e ouvir este público. Se uma das bases da teoria freudiana são os traumas vivenciados na infância, a autora questiona sobre os parâmetros do desenvolvimento do trabalho terapêutico.
Ressalta-se, ainda, o lugar do velho na sociedade, desautorizado por diversas contingências. “Essa desautorização vinda do campo social – pela aposentadoria, pela família ou instituição – esvazia-lhe o acesso à palavra, tira-lhe a interlocução e envia-lhe aos efeitos do envelhecimento orgânico.” (p.43).
Para a teoria freudiana, por meio da fala, o sujeito tem condições de reelaborar a significação dos traumas. É preciso tempo para recuperar, debater e perceber determinada situação sob um novo prisma. Para Freud, a dificuldade no tratamento de idosos reside na “grande quantidade de material inconsciente e o pouco tempo disponível ao sujeito para a sua elaboração”. (p.132)
O pai da psicanálise ressalta, ainda, a falta de “elasticidade psíquica” dos velhos, impossibilitando-os novos aprendizados e reeducação. Com uma robusta sustentação teórica aliada à prática clínica, Flávia Soares vislumbra o trabalho psíquico na velhice. Para ela, “a história (do velho) é referência.” Isso sustentaria mais o processo de construção à desconstrução de sentido.
Uma frase marcou a minha leitura e reflexão: “há que se construir a velhice durante a vida”. (p.90). Numa sociedade hedonista como a brasileira, com uma supervalorização do belo associado à juventude, trata-se de um excelente chamado. Pesquisa feita pelo Ipardes no Paraná aponta que hoje, mais de 50% dos municípios já possuem mais velhos do que jovens. Curitiba encerrará 2023 com três mil idosos a mais do que crianças.
Não há outro jeito – como para quase todo o restante – de viver, exceto vivendo. As discussões sobre qualidade de vida, alimentação saudável, prática de atividades físicas, bem-estar emocional e espiritual devem estar na ordem de todos os dias. Sem romantizar esta fase, muito menos qualificá-la de melhor idade, entendo a necessidade de falar e ser ouvido enquanto velho.
Com especificidades inerentes a este sujeito idoso, a autora refuta a hegemonia do discurso médico na clínica. Ela assevera a importância e necessidade de acolhimento do velho. Pondera que, nesta “clínica”, a presença do interlocutor é fundamental. “O idoso precisa que seu interlocutor seja de carne e osso para configurar o Outro – suporte para a envelhescência -, que é referência de filiação simbólica e objeto de investimento e de possibilidade narcísica”. (p.169)
Soares não apenas argumenta sobre as possibilidades do trabalho psíquico na velhice. Ela expõe a exclusão dos velhos dos benefícios da psicanálise para facilitar o envelhecimento. Algo para ser repensado, reavaliado e revisto para quem deseja trabalhar com estes tema e público.
Serviço:
SOARES, Flávia M. de P. Envelhescência: o trabalho psíquico na velhice Curitiba: Appris Editora, 2020